quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Criando asas...



A vida é breve, a alma é vasta:
ter é tardar




(Fernando Pessoa, Mensagem).




Um homem demora muito tempo a fazer-se. Não somos como aqueles passaritos que se soltam na imensidão dos céus pouco tempo depois de terem visto a luz.
Trazemos em nós uma semente que demora a germinar, que gasta nessa tarefa muitos anos de agitação e silêncio. É assim, decerto, porque está destinada a dar um fruto muito maior que o do pássaro.
Temos, sem dúvida, uma alma: raciocinamos, temos sede de conhecer, somos capazes de amar e de escolher. Um animal come necessariamente, se tiver fome e o alimento estiver ao seu alcance. Um homem, nas mesmas circunstâncias, pode não o fazer.
Porque, por exemplo, resolveu fazer dieta. Ou porque escolheu dar o seu alimento a outro que tinha mais fome do que ele.
Tem a possibilidade de viver de acordo com outros critérios.
Há muitos séculos que chamamos alma a esse não-sei-quê que faz parte de nós e nos permite viver num plano superior ao das coisas simplesmente materiais.
É como se possuíssemos uma espécie de asas.
Sabemos apreciar um sofá confortável, um sono reparador, um bom bife com batatas fritas. Mas precisamos de mais do que isso. E damos por nós a perguntar "porquê?", ou a discutir ideias.
E descobrimos que há qualquer coisa - não feita de células ou moléculas - que nos comove e nos atrai numa paisagem, num gesto de heroísmo, num poema, na música.Há uma beleza e um bem que não são feitos de nada que se possa tocar.
Que não estão nas coisas, embora as coisas nos levem a eles. Aquilo que é apenas material - acabamos sempre por o descobrir - sabe a pouco e não nos enche as medidas. Mas leva tempo a chegar aí.
Leva tempo até percebermos, por exemplo, que existe uma paz que não é a paz das coisas, mas sim uma harmonia interior que resulta de um comportamento correcto.
E que é esse o género de paz que nos interessa; que não nos basta aquela paz que é feita somente de ausência de vento ou de guerra.
Um homem tem de crescer não apenas corporalmente.
Deve atingir uma envergadura que ultrapassa em muito o âmbito das coisas materiais. Deve fazer-se... homem.É um caminho já de si longo.
Ainda por cima, cometemos com frequência a burrice de termos medo de ganhar asas. De largar um pouco esses outros bens - mais pequenos, mais baixos, mais... animais.
É olhar e ver como muitas vezes nos afadigamos correndo atrás da posse de bens materiais e dos prazeres que não são senão para o corpo e de que também gostamos.
Ter, gozar, curtir, comprar, comprar... Ter, ter, ter.
Mas sucede que o ter e o comprar e o curtir - usados de um modo exagerado, como fazemos - nos atrasam. Perdemos tempo.
Quem vive obcecado com a posse de prazeres e bens materiais não tem acesso aos prazeres da alma. Passa ao lado do bem e da beleza e do amor.
Porque escolheu um nível para a sua vida - o mais cómodo - e escolher uma coisa é sacrificar as outras.
Não é possível alcançar o topo da montanha e, simultaneamente, permanecer deitado à sombra
lá em baixo.
Portanto, apressemo-nos.
Pois, como escreveu o poeta, ter é tardar...

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